Em uma derrota para o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal
(STF) decidiu nesta quarta-feira (14/04), confirmar a decisão individual do
ministro Luís Roberto Barroso que abriu uma crise com o presidente Jair
Bolsonaro (sem partido) ao mandar o Senado instalar uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) para apurar a gestão da pandemia pelo governo federal. Por 10 a
1, os ministros decidiram que o Senado tem de instalar a CPI, mas ressaltaram
que cabe à própria Casa definir como devem ser executados os trabalhos do
grupo, se presencialmente, por videoconferência ou modelo híbrido. O julgamento
durou cerca de uma hora.
“O procedimento a ser seguido pela CPI deverá ser definido pelo
próprio Senado, diante das regras que vem adotando para o funcionamento dos
trabalhos na pandemia. Não cabe ao Senado decidir se vai instalar ou quando vai
funcionar, mas sim como vai proceder”, frisou Barroso.
A decisão de Barroso, assinada na última quinta-feira, enfureceu o
presidente Jair Bolsonaro, que atacou o ministro, acusando-o de “militância
política” e “politicalha” por ter determinado a abertura da CPI. A comissão tem
potencial para desgastar ainda mais a imagem do Planalto em um momento de
agravamento da pandemia e queda de popularidade do chefe do Executivo.
Em uma rápida leitura de voto, Barroso frisou que “decisões políticas
devem ser tomadas por quem tem voto”. “Todavia, nesse mandado de segurança, o
que está em jogo não são decisões políticas, mas o cumprimento da Constituição.
O que se discute é o direito de minorias políticas parlamentares fiscalizarem o
Poder público, diante de uma pandemia que já consumiu 360 mil vidas apenas no
Brasil com perspectiva de chegar à dolorosa cifra, ao recorde negativo, de 500
mil mortos“, disse Barroso.
“CPI não tem apenas o papel de investigar, no sentido de apurar coisas
erradas, elas têm também o papel de fazer diagnósticos dos problemas e apontar
soluções. Aliás, nesse momento brasileiro, esse papel construtivo e propositivo
é o mais necessário. CPIs fazem parte do cenário democrático brasileiro desde o
início da vigência da Constituição, aliás, desde antes. Não se está aqui
abrindo exceção, faz parte do jogo democrático desde sempre as comissões
parlamentares de inquérito”, acrescentou.
Barroso destacou que no governo Collor, foram abertas 29 CPIs, a mais
conhecida a que mirou PC Farias. Nos governos FHC e Lula, por sua vez, o número
de CPIs foi de 19 em cada gestão.
O único voto destoante veio do decano do STF, Marco Aurélio Mello.
Embora tenha indicado que apoia o entendimento de Barroso, Marco Aurélio frisou
que não cabe ao plenário referendar ou não a liminar do colega em um mandado de
segurança. Ou seja, para Marco Aurélio a decisão de Barroso já basta. “A
liminar do relator em mandado de segurança tem eficácia imediata”, observou.
“Sinto muito vontade em pronunciar-me, porque fui o primeiro a dizer
que a decisão do ministro Luís Roberto Barroso — não imaginando, claro, que
viria a apreciá-la nesta revisão de ofício proposta por Sua Excelência —
mostrou-se afinada com a Lei das Leis, com a Constituição Federal. Mas não
cabe. Se distribuído a mim o mandado de segurança, implementaria a liminar e
aguardaria inconformismo, porque em Direito, mediante o instrumental próprio, o
agravo (o recurso)”, acrescentou.
‘Não há tensão’.
No início da sessão, a Procuradoria-Geral da República (PGR) defendeu
o entendimento de Barroso e minimizou a tensão política provocada com a liminar
do ministro.
“Entende o Ministério Público que não temos litígio entre poderes,
apenas a necessidade de aclararmos, de reiterarmos a jurisprudência dessa corte
mesmo na situação incomum em que se vive. O que demonstra que não há nenhum tipo
de tensão entre os poderes, mas apenas delimitação clara, reafirmação precisa
da vinculação do ato de instalação de uma CPI”, disse o vice-procurador-geral
da República, Humberto Jacques. Jacques é braço-direito do chefe do Ministério
Público Federal, Augusto Aras, que tem tentado se cacifar nos bastidores para a
vaga que será aberta no STF em julho com a aposentadoria de Marco Aurélio
Mello.
“Entende o Ministério Público que a liminar é correta e coerente. As
mudanças fáticas não justificam a alteração da jurisprudência”, acrescentou
Jacques.
Além de irritar o Palácio do Planalto, a decisão de Barroso também
provocou mal-estar em uma ala do tribunal, que não vê com bons olhos a abertura
dos trabalhos de uma CPI em plena pandemia. O ponto foi levantado por senadores
governistas durante a sessão que oficializou a criação da comissão na
terça-feira, 13, em um movimento para esvaziar a proposta de funcionamento
semi-presencial e embargar o início dos trabalhos.
Em um primeiro momento, o julgamento foi pautado no plenário virtual,
ferramenta que permite aos ministros analisarem os processos e incluírem os
votos na plataforma digital, sem necessidade de reunião. No entanto, após
conversas entre os membros do tribunal e considerando a repercussão do tema, o
presidente do STF, Luiz Fux, decidiu antecipar o julgamento e transferir a
discussão para a sessão colegiada por videoconferência.
A decisão de Barroso atendeu a um pedido formulado pelos senadores
Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e Jorge Kajuru (Cidadania-GO), que acionaram o
tribunal alegado inércia do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), em
abrir a investigação. Quando a liminar foi concedida, o requerimento pela
abertura da CPI da Covid estava na gaveta de Pacheco havia mais de dois meses.
Como mostrou o Estadão, Barroso comunicou Pacheco previamente do teor
da decisão, em um sinal de cortesia – e uma tentativa para que o próprio
presidente do Senado se antecipasse ao STF e instalasse a CPI por conta
própria, sem a obrigação de uma decisão judicial. No entanto, o senador manteve
a posição de que uma comissão de inquérito neste momento só vai dividir os
esforços direcionados ao enfrentamento da pandemia e criar instabilidade ao
País – movimento que, em última instância, jogou a responsabilidade da decisão
nas mãos do Supremo Tribunal Federal.
Em reação, o presidente Jair Bolsonaro acusou Barroso de ‘militância
política’ e ‘politicalha’. “A CPI que Barroso ordenou instaurar, de forma
monocrática, na verdade, é para apurar apenas ações do governo federal. Não
poderá investigar nenhum governador, que porventura tenha desviado recursos
federais do combate à pandemia”, postou Bolsonaro em suas redes sociais.
“Barroso se omite ao não determinar ao Senado a instalação de processos de
impeachment contra ministro do Supremo, mesmo a pedido de mais de 3 milhões de
brasileiros. Falta-lhe coragem moral e sobra-lhe imprópria militância
política.”
O presidente chegou a sugerir que a pressão pelo impeachment de
ministros do Supremo Tribunal Federal poderia mudar os rumos da instalação da
CPI. Em conversa telefônica com Kajuru, divulgada pelo próprio senador,
Bolsonaro também orientou que a comissão, se instalada, trabalhasse para apurar
a atuação de prefeitos e governadores, o que tiraria o foco do seu governo.
Precedentes
A Constituição estabelece três requisitos básicos a serem preenchidos
para a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que é um direito da
minoria no Congresso: número mínimo de assinaturas de parlamentares, prazo para
conclusão dos trabalhos e fato determinado a ser investigado.
Como mostrou o blog, a decisão de Barroso reedita um roteiro seguido
pelo próprio Supremo em CPIs contra o governo Lula. Em 2005, por 9 votos a 1, a
Corte confirmou a decisão individual do então ministro Celso de Mello e
determinou ao ex-presidente da Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), a instauração
da CPI dos Bingos para investigar o escândalo envolvendo Waldomiro Diniz,
ex-assessor de José Dirceu acusado de receber propina de bicheiros para a
campanha do ex-presidente Lula (PT) em 2002.
Na ocasião, parlamentares da oposição também acionaram o Supremo
alegando que, apesar de terem preenchido os requisitos para a abertura da CPI,
o presidente do Senado adiava a instalação da comissão.
Dois anos depois, em 2007, o mesmo Celso de Mello deu ordem
semelhante, desta vez dirigida ao então presidente Câmara dos Deputados,
Arlindo Chinaglia (PT), que tentava contornar a instalação da CPI do Apagão
Aéreo com uma votação em plenário, embora a oposição já tivesse levantando
assinaturas necessárias para abrir a investigação sobre a crise do sistema de
tráfego aéreo do País. Na época, a pressão pela apuração veio na esteira do
choque entre o Boeing da Gol e o jatinho Legacy, da empresa Excel Aire, que
matou 154 pessoas em 2006. A liminar também foi confirmada em plenário.
Em sua composição atual, o tribunal tem quatro ministros que
participaram de pelo menos um dos julgamentos sobre as CPIs anteriores: Marco
Aurélio Mello e Gilmar Mendes estiveram presentes nas duas votações enquanto
Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski votaram na sessão da CPI do Apagão. Todos
fizeram coro pela abertura das investigações.
Defesa
Enquanto Barroso tem evitado dar declarações públicas sobre o assunto,
outros ministros saíram em defesa da decisão. O colega Alexandre de Moraes
disse que a determinação foi tomada por ‘obrigação’, criticou as declarações do
presidente e exigiu respeito dos Poderes Executivo e Legislativo.
Na mesma linha, o decano Marco Aurélio Mello repreendeu os ataques do
presidente. “Ele esperneou e, para mim, de uma forma descabida, atacando o
ministro Barroso. Não constrói. A crítica construtiva, tudo bem, mas ataque?”,
disse. “O que alcança um de nós alcança a instituição”.
Sem citar Bolsonaro, Fux disse que a democracia pressupõe que os
Poderes atuem de forma ‘independente e harmônica’.
*AE
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